Há 33 anos, a tragédia de Hillsborough marcaria para sempre uma cidade inteira

Por Lucas Paes
Foto: Reprodução/Twitter Kenny Dalglish

Mosaico feito em homenagem as vítimas de Hillsborough na KOP de Anfield

Poucas tragédias na história do futebol foram capazes de causar um impacto tão grande, doloroso e, infelizmente, duradouro, como a que ocorreu em Hillsborough com os torcedores do Liverpool no dia 15 de abril de 1989. As 97 mortes causadas pela negligência de todo o sistema de segurança do jogo que envolvia Nottingham Forrest e Liverpool pela FA Cup foram por mais de duas décadas jogadas nas costas das vítimas, o que fez com que uma cidade se unisse contra um governo, contra o jornal e de certa forma, em algo que dura até hoje, contra um país. Muito do que é o Liverpool FC e do que é a cultura da cidade de Liverpool se criou naquele dia.

Para entender como Hillsborough teve tamanho impacto é preciso entender também o contexto que vivia o Reino Unido naquele momento. As medidas liberais do governo de Margareth Tatcher acabaram por atingir um país inteiro e Liverpool, uma cidade portuária, industrial, trabalhista e historicamente de esquerda era um polo de oposição à ela. Odiada na cidade, ela atingiu fortemente trabalhadores em todo o Reino Unido enquanto governava, Historicamente, Liverpool sempre teve uma cultura muito diferente da Londrina e isso se ampliou neste período, principalmente devido a forma como as medidas e as privatizações dilaceraram a economia local. O governo na época se recusou a fornecer ajuda a quem foi atingido pelas privatizações. Há melhores detalhes neste texto do Aventuras na História ou nesta matéria (em inglês) da BBC. 

Porém, algo em que não conseguia mexer era no futebol, seja pelo lado bom, na diminuição das brigas e melhora de estrutura ou no lado ruim, que era dilacerar os sindicatos para ao mesmo tempo dilacerar o poder de hooligans no país. Hillsborough acabou se tornando a medida perfeita, onde o governo da época, de maneira cruel, diga-se, resolveu dois problemas de uma vez só e passou impune pela forma como simplesmente jogou a culpa nas costas dos torcedores.

Naquele dia, o que ocorreu foi que a organização do jogo, que já era num estádio que não deveria receber uma partida daquele tamanho, simplesmente colocou a torcida do Liverpool no menor setor do estádio. Os policiais, completamente desacostumados a situações daquelas, simplesmente abriram os portões para a entrada da multidão, o que causou superlotação, empurra empurra e 97 mortes, além de mais de 700 feridos. Se esperava do parlamento que se culpassem os responsáveis, mas mais uma vez ele atuou contra a cidade e colocou a culpa da tragédia no vandalismo dos torcedores dos Reds, no conhecido "Relatório Taylor" que naquele dia não tinham absoluta culpa nenhuma. A injustiça reverberou em toda a cidade de Liverpool e rompeu de vez qualquer tipo de simpatia da cidade ao parlamento em Londres. O desastre acabou unindo até os rivais Everton e Liverpool.
 

A tragédia de Hillsborough acabou sendo usada como bode expiatório para diversas mudanças estruturais nos estádios britânicos, algumas bem vindas e outras exageradas. Mesmo que algumas dessas mudanças estruturais tenham sido positivas, as famílias atingidas pela tragédia, o que inclui a do ídolo do Liverpool Steven Gerrard, que perdeu um primo naquela tarde, lutaram desde a finalização do caso contra a sentença de culpa em cima das 97 vítimas. Foram 20 anos de luta para que o caso fosse reaberto e obviamente a culpa fosse atribuída a organização da partida e ao próprio governo, que teve de indenizar todas as famílias vitimadas pelo que ocorreu.

Hoje, 33 anos depois do ocorrido, ainda que não se precise mais buscar justiça como antes, a campanha "Justice for the 97" nunca terminará, para que sempre sejam lembradas as vidas perdidas naquele dia e para que nunca mais ocorra algo do tipo. Em um momento onde muitos querem afirmar que o futebol e a política não se juntam, é preciso lembrar da forma como a política simplesmente interviu num caso óbvio de negligência para culpar os torcedores e fazer "a corda estourar no lado mais fraco". 

Culturalmente e socialmente, nem mesmo a mudança da sentença e a anulação do Relatório Taylor mudaram a rixa entre Liverpool e o governo central em Londres. Recentemente, a torcida dos Reds vaiou massivamente "God Save the Queen" na final da Copa da Liga contra o Chelsea. Há alguns anos, a torcida dos Reds exibiu orgulhosamente uma faixa afirmando que "não somos ingleses, somos scousers (termo para quem é da região do Merseyside)". O que importa, porém, neste dia 15 de abril, é relembrar todas as vítimas de uma tragédia que poderia ter sido evitada. Que os 97 jamais sejam esquecidos em nossa memória e essa frase vale para qualquer um que goste de futebol, em qualquer lugar do mundo. 
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